Quando eu era criança morava, aqui em frente ao escritório, uma pasteleira que chamavamos carinhosamente de “Tia Inês”. Era uma senhora grande, de fala arrastada, avental branco, saia bege cumprida e olhar cabisbaixo, que tinha o dom de fazer a melhor massa de pastel que eu já provei.
Recordo-me que ela atendia em um Trailer que estava instalado na parte da frente da sua casa, tal qual eram a maioria das lanchonetes ou vendedores de cachorro quente daquela época (foi muito antes do começo das importações da Towner). Esse trailer era circundado por paredes de alvenaria de todos os lados, de tal modo que mesmo que quisessem roubá-lo, ninguém conseguiria. Ele literalmente funcionava dentro de um quarto com uma porta e duas janelas.
Aquelas paredes me deixavam preocupado. Eu sempre pensava que aquele trailer que tinha sido criado para ser uma casa móvel, nunca mais poderia se mover. Imaginações de criança.
A minha ignorância infantil me fazia pensar que tais paredes eram simplesmente indestrutíveis. Eu via um muro e logo tinha a certeza de que ele nunca poderia ser destruído ou derrubado, ou seja, que para toda a eternidade ele estaria ali, fadado a existir igualzinho quando fizeram. Tijolos empilhados ligados por cimento para mim eram indestrutíveis, iguais a pedras milenares. Isso foi antes de ver um pedreiro destruindo uma casa do meu bairro a chutes e marretaços, e também de assistir a uma implosão transmitida ao vivo pela televisão.
Um dia a Tia Inês fechou a pastelaria. As paredes foram derrubadas e o trailer foi retirado, talvez vendido para alguém que restaurasse as suas funções originais, não sei, só sei que ele se movendo e indo embora rebocado por uma Veraneio Bege é uma das minhas lembranças mais remotas de infância.
Muitas vezes criamos imagens que podem facilmente sofrer mutações, basta uma simples confirmação do contrário, como foi ver o pedreiro fazendo voar pedaços de alvenaria com uma simples marreta. As tais paredes brancas do Trailer-Pastelaria me significavam algo intransponível e definitivo, tal qual certas coisas que hoje, moldam a minha vida adulta como ela é. Verdadeiramente única.
Vejo pessoas ao meu redor levantando barreiras sem nem saber qual a causa, serventia ou ao menos a razão de misturar a massa e colocar cuidadosamente tijolo por tijolo, um em cima do outro. Vejo-as se enganando dizendo que tal parede vai servir para que o sofrimento que aquele ventinho frio que corre por ali nunca mais aconteça. Mentira. A verdadeira utilidade da parede é não precisar mais enxergar ou lidar com os sentimentos que moram ao lado e que há tanto as assombram.
A Tia Inês foi embora não porque a pastelaria não dava lucro. Foi embora porque não soube lidar com seus problemas e sofrimentos particulares, do mesmo modo que a maioria das pessoas que, se esforçando pra carregar um peso grande de traumas e emoções (nem sempre verdadeiras) do passado, faria. É muito mais confortável dizer que não quer mais do que admitir que quer e ter que resolver o que nunca foi resolvido.
A barreira serve como desculpa. Serve para esconder que atrás daquela parede, existem razões principais para as dores, e que em nada se relacionam com o frequentemente apontado pedreiro incompetente que teima em dizer que aquela parede não é o problema...
No final de tudo, ele tem razão. É preciso parar de se esconder atrás de exigências que ao mesmo tempo não nos foram exigidas e enfrentar de frente aquela dor vizinha que sempre esteve ali, mas nem ao menos foi notada...
quinta-feira, 13 de agosto de 2009
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2 comentários:
Rafa, em uma pesquisa na internet, encontrei o seu texto, no qual fiquei muito comovida.
Gostaria de entrar em contato para lhe conhecer e conversarmos.
Um grande abraço Tia Inês da Pastelaria.
Retomando, o email acima é da minha neta. Podes responder para o mesmo que ela me repassa.
Tia Ines
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